Há algum tempo atrás encontrei Biduca pelas ruas. Antes que alguém gaste os preciosos neurônios para saber quem é Biduca, informo que se trata de um camarada gente boa passado da medida, com o qual tive o prazer de dividir parte da minha adolescência. Moreno atarracado, típico caboclo paraense, Biduca tinha como traço principal o bom humor, traduzido num sorriso fácil e uma anedota na ponta da língua.
Seu pai, Cícero Chaves, de saudosa memória nascera e vivera boa parte da vida nos grotões do Maranhão, até que dera com os costados no Pará, onde casara e constituíra família. Analfabeto, mas com boa visão do mundo, Cícero era uma fanático pela arte de Jakson do Pandeiro e Luiz Gonzaga, cujas canções sabia de cor. Nos dias em que se tinha a sua companhia, Cícero, de voz afinada, desfiava o repertório de xotes e baiões e nos intervalos, imitava uma sanfona com a boca, para a alegria dos que expectadores. Para trabalhar na roça, Cícero nunca foi grande coisa, mas era um bom contador de “causos”, alguns tão inverossímeis, que o interlocutor não sorria por respeito ao narrador. Cícero também gostava de caçar. Quando ia para uma espera, nunca falhava e costumava trazer para casa paca, tatu, que alegremente dividia com os vizinhos. Eram tempos antigos, nos quais não existia a preocupação com o meio ambiente ou com a preservação das espécies, mas mesmo assim, Cícero só caçava para alimentar a família. Era comum encontrá-lo nas estradas, com uma espingarda calibre 32 nas costas, um bornal trançado a cantarolar velhas cantigas agrestes.
Família numerosa a do Cícero, aliás, família numerosa era comum na época. Todo mundo caprichava e tratava se crescer e multiplicar. Biduca, era por assim dizer, a ponta da rama, mas saíra ao pai, tanto no linguajar característico de caboclo interiorano, com na arte de engrenar uma boa prosa.
No início dos anos 80, os dois, pai e filho tentaram a sorte em Serra Pelada, mas sem muito sucesso. Só conseguiram umas graminhas de ouro, que mal deram para saldar algumas dívidas. Depois da morte do pai, o moço tratou de tomar conta da família e a última vez que o vi era vendedor de livros e dos bons. Já não era o bronco de antigamente, ao contrário, exibia uma cultura roubada dos muitos livros que lera e muito pouco dos bancos de escola.
Biduca é autodidata que tenta escrever uma história interessante. Não uma história de xotes e de onças trepadas no pé da sumaúma, como a do seu progenitor, mas algo mais palpável, aliás, como exige os tempos modernos. Biduca é um brasileiro que hoje vive na selva das cidades, em busca dos sonhos, que podem ser traduzidos na própria subsistência.
(artigo publicado no jornal HOJE, edição 246)