"De tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça. De tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha
de ser honesto".

(Rui Barbosa)


sábado, 13 de outubro de 2007

História de dois brasileiros autodidatas

Há algum tempo atrás encontrei Biduca pelas ruas. Antes que alguém gaste os preciosos neurônios para saber quem é Biduca, informo que se trata de um camarada gente boa passado da medida, com o qual tive o prazer de dividir parte da minha adolescência. Moreno atarracado, típico caboclo paraense, Biduca tinha como traço principal o bom humor, traduzido num sorriso fácil e uma anedota na ponta da língua.

Seu pai, Cícero Chaves, de saudosa memória nascera e vivera boa parte da vida nos grotões do Maranhão, até que dera com os costados no Pará, onde casara e constituíra família. Analfabeto, mas com boa visão do mundo, Cícero era uma fanático pela arte de Jakson do Pandeiro e Luiz Gonzaga, cujas canções sabia de cor. Nos dias em que se tinha a sua companhia, Cícero, de voz afinada, desfiava o repertório de xotes e baiões e nos intervalos, imitava uma sanfona com a boca, para a alegria dos que expectadores. Para trabalhar na roça, Cícero nunca foi grande coisa, mas era um bom contador de “causos”, alguns tão inverossímeis, que o interlocutor não sorria por respeito ao narrador. Cícero também gostava de caçar. Quando ia para uma espera, nunca falhava e costumava trazer para casa paca, tatu, que alegremente dividia com os vizinhos. Eram tempos antigos, nos quais não existia a preocupação com o meio ambiente ou com a preservação das espécies, mas mesmo assim, Cícero só caçava para alimentar a família. Era comum encontrá-lo nas estradas, com uma espingarda calibre 32 nas costas, um bornal trançado a cantarolar velhas cantigas agrestes.

Família numerosa a do Cícero, aliás, família numerosa era comum na época. Todo mundo caprichava e tratava se crescer e multiplicar. Biduca, era por assim dizer, a ponta da rama, mas saíra ao pai, tanto no linguajar característico de caboclo interiorano, com na arte de engrenar uma boa prosa.

No início dos anos 80, os dois, pai e filho tentaram a sorte em Serra Pelada, mas sem muito sucesso. Só conseguiram umas graminhas de ouro, que mal deram para saldar algumas dívidas. Depois da morte do pai, o moço tratou de tomar conta da família e a última vez que o vi era vendedor de livros e dos bons. Já não era o bronco de antigamente, ao contrário, exibia uma cultura roubada dos muitos livros que lera e muito pouco dos bancos de escola.

Biduca é autodidata que tenta escrever uma história interessante. Não uma história de xotes e de onças trepadas no pé da sumaúma, como a do seu progenitor, mas algo mais palpável, aliás, como exige os tempos modernos. Biduca é um brasileiro que hoje vive na selva das cidades, em busca dos sonhos, que podem ser traduzidos na própria subsistência.

(artigo publicado no jornal HOJE, edição 246)

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