Muitas peripécias de Mário filósofo - aquele ermitão
que habitava uma cabana velha lá pras brenhas do Araguaia - poderiam ser
colocadas na conta do imenso folclore que o circundava, de modo que não sei
precisar se esse episódio é mais uma das muitas invencionices popular, coisa de
matuto que na falta do que fazer preenchia as noites, reproduzindo essas
marmotas. Pelo sim, pelo não, vou vender do preço que comprei.
De Mário ninguém podia duvidar de nada, sua vida era
um completo mistério, às vezes era visto perambulando nos estreitos caminhos,
em companhia dos seus dos cachorros perdigueiros, Mirasol e Miralua e em outras
ocasiões só se ouvia o seu cantarolar estranho no meio da noite escura. Por
conta disso tinha gente que era capaz de jurar que jurava que ele tinha parte
com o canhoto, ou se transformava em lobisomem nas noites de lua nova.
Fora essas coisas malucas, ele era gente boa, cheio
de manias, mas gente boa. A ele recorria àquela gente em busca das gotas de
sabedoria que ele espalhava pelo caminho. Remédio pra panarício, unha
encravada, constipação, gravidez complicada e até quebranto dos bacurizinhos,
tudo era com ele.
A única coisa que não combinava com ele era uma
jornada no rabo da foice ou da enxada, porque ele nunca fora disso, a bem da
verdade, por uma questão filosófica ou por pura preguiça, era adepto do
“nadismo”, aquela ideia do sujeito passar o dia todo sem fazer nada, só curtindo
o lento passar do tempo.
Naquelas paragens do Araguaia não fazer nada na vida
nunca foi coisa do outro mundo; a maioria dos ribeirinhos cultivava próximo de
casa uma ou duas linhas de mandioca, de onde se tirava a farinha, o tucupi, a
massa pra tapioca, uma dúzia de galinhas de capoeira e era só. Com a
generosidade do rio o cardápio estava garantido.
E foi numa dessas tardes bucólicas que um granfino
da cidade encontrou Mário à sobra de uma sumaúma, consertando as malhas de uma
tarrafa. A seu lado um puçá atopetado de Curimatás e piaus.
Agastado ao ver tanta malemolência numa só criatura,
o típico cidadão urbano puxou conversa:
- E ai amigo, muito peixe?
Mário se levantou meio a contragosto, descansou o
corpo numa perna, depois na outra. – Tem uns dois, aqui costuma dá muito peixe.
- O senhor faz o quê com o peixe?
Mário pareceu ouvir coisas do outro mundo. – Fazer o
quê? é pro meu consumo meu patrão.
- Você não vende o que sobra?
- Não sobra, eu só pesco o que eu dou conta de
comer.
- Você não pensa no futuro? Por que vocês aqui da
região não montam uma cooperativa e passa a pescar em grande quantidade?
- Por quê? – Quis saber Mário.
- Por quê? Ora porque, pra vocês se desenvolverem,
produzir, ganhar dinheiro.
- Mas...pra que? - Tornou a perguntar.
O granfino coçou a cabeça atordoado. Não acreditava
que aquele camarada no alto dos seus quarenta e tantos não valorizasse o
dinheiro que movia os moinhos do mundo – Você não pensa no futuro? Veja, com
uma produção, vocês poderiam abastecer essas cidades do entorno, adquirir
veículos para transportar o produto, conseguir financiamento para fazer galpões
com câmaras frias para armazenamentos, enfim, crescer, progredir.
- Sim, mas, pra quê?
O cidadão se sentou num raiz da sumaúma, se serviu de
toda paciência que ainda lhe restava e decidiu colocar “juízo” na cabeça
daquele sujeito xucro
– Para quando você estiver velho, com 70, 80 anos possa
ter condições de ter uma vida tranquila, uma casa na beira da praia, uma rede
preguiçosa, muitos netos e não precisar de nada – disse.
Mário, que não era outro, senão a voz explícita da
sabedoria, travestida em um caboclo ribeirinho, coçou a barbicha e fechou a
questão: - Por que devo esperar ter 70,80 anos pra viver tranquilo, se eu posso
viver tranquilo agora?
Mais do que isso seria pedir demais.
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