"De tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça. De tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha
de ser honesto".

(Rui Barbosa)


sábado, 28 de janeiro de 2017

COLUNA - Adepto do nadismo



Muitas peripécias de Mário filósofo - aquele ermitão que habitava uma cabana velha lá pras brenhas do Araguaia - poderiam ser colocadas na conta do imenso folclore que o circundava, de modo que não sei precisar se esse episódio é mais uma das muitas invencionices popular, coisa de matuto que na falta do que fazer preenchia as noites, reproduzindo essas marmotas. Pelo sim, pelo não, vou vender do preço que comprei.

De Mário ninguém podia duvidar de nada, sua vida era um completo mistério, às vezes era visto perambulando nos estreitos caminhos, em companhia dos seus dos cachorros perdigueiros, Mirasol e Miralua e em outras ocasiões só se ouvia o seu cantarolar estranho no meio da noite escura. Por conta disso tinha gente que era capaz de jurar que jurava que ele tinha parte com o canhoto, ou se transformava em lobisomem nas noites de lua nova.

Fora essas coisas malucas, ele era gente boa, cheio de manias, mas gente boa. A ele recorria àquela gente em busca das gotas de sabedoria que ele espalhava pelo caminho. Remédio pra panarício, unha encravada, constipação, gravidez complicada e até quebranto dos bacurizinhos, tudo era com ele.

A única coisa que não combinava com ele era uma jornada no rabo da foice ou da enxada, porque ele nunca fora disso, a bem da verdade, por uma questão filosófica ou por pura preguiça, era adepto do “nadismo”, aquela ideia do sujeito passar o dia todo sem fazer nada, só curtindo o lento passar do tempo.

Naquelas paragens do Araguaia não fazer nada na vida nunca foi coisa do outro mundo; a maioria dos ribeirinhos cultivava próximo de casa uma ou duas linhas de mandioca, de onde se tirava a farinha, o tucupi, a massa pra tapioca, uma dúzia de galinhas de capoeira e era só. Com a generosidade do rio o cardápio estava garantido.

E foi numa dessas tardes bucólicas que um granfino da cidade encontrou Mário à sobra de uma sumaúma, consertando as malhas de uma tarrafa. A seu lado um puçá atopetado de Curimatás e piaus.   

Agastado ao ver tanta malemolência numa só criatura, o típico cidadão urbano puxou conversa:

- E ai amigo, muito peixe?

Mário se levantou meio a contragosto, descansou o corpo numa perna, depois na outra. – Tem uns dois, aqui costuma dá muito peixe.

- O senhor faz o quê com o peixe?

Mário pareceu ouvir coisas do outro mundo. – Fazer o quê? é pro meu consumo meu patrão.

- Você não vende o que sobra?

- Não sobra, eu só pesco o que eu dou conta de comer.

- Você não pensa no futuro? Por que vocês aqui da região não montam uma cooperativa e passa a pescar em grande quantidade?

- Por quê? – Quis saber Mário.

- Por quê? Ora porque, pra vocês se desenvolverem, produzir, ganhar dinheiro.

- Mas...pra que? - Tornou a perguntar.

O granfino coçou a cabeça atordoado. Não acreditava que aquele camarada no alto dos seus quarenta e tantos não valorizasse o dinheiro que movia os moinhos do mundo – Você não pensa no futuro? Veja, com uma produção, vocês poderiam abastecer essas cidades do entorno, adquirir veículos para transportar o produto, conseguir financiamento para fazer galpões com câmaras frias para armazenamentos, enfim, crescer, progredir.

- Sim, mas, pra quê?

O cidadão se sentou num raiz da sumaúma, se serviu de toda paciência que ainda lhe restava e decidiu colocar “juízo” na cabeça daquele sujeito xucro 

– Para quando você estiver velho, com 70, 80 anos possa ter condições de ter uma vida tranquila, uma casa na beira da praia, uma rede preguiçosa, muitos netos e não precisar de nada – disse.

Mário, que não era outro, senão a voz explícita da sabedoria, travestida em um caboclo ribeirinho, coçou a barbicha e fechou a questão: - Por que devo esperar ter 70,80 anos pra viver tranquilo, se eu posso viver tranquilo agora?


Mais do que isso seria pedir demais.  

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