"De tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça. De tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha
de ser honesto".

(Rui Barbosa)


quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

A farinhada

Naquela corrutela (se bem que nem assim poderia ser chamada), uma vez que a comunidade não passava de pequenas casas que distavam um quilômetro ou mais uma das outras, tudo era beira chão. Ainda que para os natos da região um quilômetro não passasse de um ‘‘pulinho’’ de nada, não se poderia chamar o Carrasco de Areia de um burgo propriamente dito. Salvo o boteco do Roseno, o armazém do Olavo, o campo de futebol e a escolinha, todos na beira da Tranzamazônica, o restante se localizava nas brenhas de uma floresta cortada por igarapés e capoeiras de imbaúba.


As vicinais, compostas de imensos carrascos de areia, por vezes ameaçavam fazer atolar até os veículos traçados que valentemente rasgavam aquele fim de mundo. Assim era o Carrasco de Areia, a coisa de 90 quilômetros de Marabá, na segunda metade dos anos 70.
Naqueles dias, além da lua que começava a sair de cheia para minguante, apenas o alumiar de alguma lamparina teimava em cortar a noite que ainda estava clara. Era a família de Ramiro que chegava para se juntar a renca do Capixaba Preto e a garotada do João sem Medo. Mas não era de crer que estavam todos se pondo rapazes?


Deve se dizer que naquela época, eletrificação rural era algo que não fazia parte das palestras de fim de tarde. nem mesmo de um sonho, ou de um conto mal contado.


Farinhada era assim mesmo. Várias famílias, montes e montes de mandioca, um moinho tocado a quatro braços, um forno de alumínio batido, muita disposição para o trabalho, talagadas homéricas de cachaça de cabeça e muitos causos de onça trepada no chão. Aliás sobre lorotas e potocas, ninguém era mais respeitado do que Geraldo Boca Larga, uma mulato paraibano, que era capaz de soltar mentiras, uma atrás da outra por horas a fio.


Enquanto Geraldo potocava, como se fosse a mais pura verdade, a moçada varava a noite espremendo massa, separando o polvilho do tucupi.


Na madrugada, no cantar do galo, D. Maroca, uma negra com quase 100 quilos, e 80 anos nas costas, moça velha, vitalina juramentada de muito respeito cantarolava no terreiro, enquanto apanhava gravetos para acender o fogo. Antes de raiar do dia, o café fresco e forte encheria as garrafas térmicas e seria servido em doses generosas para a ‘‘cabocada’’, acompanhado de beju. O café de D. Maroca e a massa de mandioca, misturada ao polvilho, assada no forno iriam dar a sustância necessária para mais um dia de batente duro.


No final da semana, dezenas de sacas de farinha da boa, metade seca, metade de puba, ou d’água, como diziam os paraenses, que já naquela época perdiam em número para maranhenses, que chegavam aos magotes.


No dia do apurado, o povoado mais próximo ficava em festa. Além do futebol incipiente, o forró pé de serra puxado pela sanfona de Zeca do Nilo dava o tom. Moças casadoiras, vestidas nos melhores trajes davam saracoteavam brejeiramente e eram cortejadas pelos cablocos parrudos. Tudo no maior dos respeitos, porque ninguém era trouxa de tomar gosto com as moças da localidade. Já naquele tempo, um facão castanheiro funcionava que era uma beleza.

Artigo publicado no jornal HOJE de sexta - Coluna do Marcel

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