"De tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça. De tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha
de ser honesto".

(Rui Barbosa)


sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

O suave milagre

[Eça de Queiroz]

Nesse tempo, Jesus ainda se não afastara da Galiléia e das doces, luminosas margens do Lago de Tiberíade: - mas a nova dos seus milagres penetrara já até Enganim, cidade rica, de muralhas fortes, entre olivais e vinhedos, no país de Issacar.

Uma tarde, um homem de olhos ardentes e deslumbrados passou no fresco vale, e anunciou que um novo Profeta, um Rabi formoso, percorria os campos e aldeias da Galiléia, predizendo a chegada do reino de Deus, curando todos os males humanos. E enquanto descansava, sentado à beira da Fonte dos Vergéis, contou ainda que esse Rabi, na estrada de Magdala, sarara da lepra o servo de um decurião romano, só com estender sobre ele a sombra das suas mãos; e que noutra manhã, atravessando numa barca para a terra dos Gerassênios, onde começava a colheita de bálsamos, ressuscitara a filha de Jairo, homem considerável e douto que comentava sobre livros na sinagoga.

E como em redor , assombrados, seareiros, pastores, e as mulheres trigueiras com a bilha no ombro, lhe perguntassem se esse era, em verdade, o messias da Judéia, e se diante dele refulgia a espada de fogo, e se o ladeavam, caminhando como as sombras de duas torres, as sombras de Gogue e de Magogue. O homem, sem mesmo beber daquela água tão fria de que bebera Josué, apanhou o cajado, sacudiu os cabelos, e meteu pensativamente por sobre o Aqueduto, logo sumido na espessura das amendoeiras em flor. Mas uma esperança, deliciosa como o orvalho nos meses em que canta a cigarra, refrescou as almas simples; logo, por toda a campina que verdeja até Áscalon, o arado pareceu mais brando de enterrar, mais leve de mover a pedra do lagar; as crianças, colhendo ramos de anêmonas, espreitavam pelos caminhos se além da esquina do muro, ou de sob o sicômoro, não surgiria uma claridade; e nos bancos de pedra, às portas da cidade, os velhos, correndo os dedos pelos fios das barbas, já não desenrolavam, com tão sapiente certeza, os ditames antigos.

Ora, então, vivia em Enganim um velho, por nome Obede, de uma família pontificial de Samaria, que sacrificara nas aras do Monte Ebal, senhor de fartos rebanhos e de fartas vinhas - e com o coração tão cheio de orgulho como o seu celeiro de trigo. Mas um vento árido e abrasado, esse vento de desolação que ao mando do Senhor sopra das torvas terras de Assur, matara as reses mais gordas das suas manadas, e pelas encostas, onde as suas vinhas se enroscavam ao olmo, e se estiravam na latada airosa, só deixara, em torno dos olmos, e pilares despidos, sarmentos, cepas mirradas, e a parra roída de crespa ferrugem. E Obede, agachado à soleira da sua porta, com a ponta do manto sobre a face, palpava a poeira, lamentava a velhice, ruminava queixumes contra o Deus cruel.

Apenas ouvira falar desse novo Rabi da Galiléia, que alimentava as multidões, amedrontava os demônios, emendava todas as desventuras - Obede, homem lido, que viajara na Fenícia, logo pensou que Jesus seria um desses feiticeiros, tão costumados na Palestina, como Apolônio, ou Rabi Ben-Dossa, ou Simão, o Sutil.

Esses, mesmo nas noites tenebrosas, conversam com as estrelas, para eles sempre claras e fáceis nos seus segredos; com uma vara afugentam de sobre as searas os moscardos gerados nos lodos do Egito; e agarram entre os dedos as sombras, que conduzem, como toldos benéficos, para cima das eiras, à hora da sesta.

Jesus da Galiléia, mais novo, com magias mais viçosas decerto, se ele largamente o pagasse, sustaria a mortandade dos seus gados, reverdeceria os seus vinhedos. Então, Obede ordenou aos seus servos que partissem, procurassem por toda a Galiléia o Rabi novo, e com promessa de dinheiros e alfaias o trouxessem a Enganim, no país de Issacar.

Os servos apertaram os cinturões de couro - e largaram pela estrada das caravanas, que, costeando o Lago, se estende até Damasco.. Uma tarde, avistaram sobre o poente, vermelho como uma romã muito madura, as neves finas do monte Hermo. Depois, na frescura de uma manhã macia, o Lago de Tiberíade resplandeceu diante deles transparente, coberto de silêncio, mais azul do que o céu, todo orlado de prados floridos, de densos vergéis, de rochas de pórfiro, e de alvos terraços por entre os palmares, sob o vôo das rolas. Um pescador que desamarrava preguiçosamente a sua barca de uma ponta de relva, assombreada de aloendros, escutou, sorrindo, os servos. O Rabi de Nazaré? Oh! Desde o mês de Ijar, o Rabi descera, com os seus discípulos, para os lados para onde o Jordão leva as águas.

Os servos, correndo, seguiram pelas margens do rio, até adiante do vau, onde ele se estira num largo remanso, e descansa, e um instante dorme, imóvel e verde, à sombra dos tamarindos. Um homem da tribo dos Essênios, todo vestido de linho branco, apanhava lentamente ervas salutares, pela beira da água, com um cordeirinho branco ao colo. Os servos humildemente saudaram-no, porque o povo ama aqueles homens de coração tão limpo, e claro, e cândido como as suas vestes cada manhã lavadas em tanques purificados. E sabia ele da passagem do novo Rabi da Galiléia que, como os Essênios, ensinava a doçura, e curava s gentes e os gados? O Essênio murmurou que o Rabi atravessara o oásis de Engada, depois se adiantara para além... - Mas onde, 'além'? - Movendo um ramo de flores roxas, que colhera, o Ess6enio mostrou as terras de além do Jordão, a planície de Moabe.

os vadearam o rio ­ e debalde procuraram Jesus, arquejando pelos rudes trilhos, até às fragas, onde se ergue a cidadela sinistra de Macaur... No Poço de Iacube, repousava uma larga caravana, que conduzia para o Egito mirra, especiarias e bálsamos de Gileade: e os cameleiros, tirando a água com os baldes de couro, contaram aos servos de Obede que em Gádares, pela lua nova, um Rabi maravilhoso, maior que Davi ou Isaías, arrancara sete demônios do peito de uma tecedeira, e que, à sua voz, um homem degolado pelo salteador Barrabás, se erguera da sua sepultura e recolhera ao seu horto. Os servos, esperançados, subiram logo açodadamente pelo caminho dos peregrinos até Gádares, cidade de altas torres, e ainda mais longe até às nascentes de Amalha... Mas Jesus, nessa madrugada, seguido por um povo que cantava e sacudia ramos de mimosa, embarcara no Lago, num batel de pesca, e à vela navegara para Magdala. E os servos de Obede, descoroçoados, de novo passaram o Jordão na Ponte das Filhas de Jacó.

Um dia, já com as sandálias rotas dos longos caminhos, pisando já as terras da Judéia romana, cruzaram um fariseu sombrio, que recolhia a Efraim, montado na sua mula. Com devota reverência, detiveram o homem da Lei, Encontrara ele, por acaso, esse Profeta novo da Galiléia que, como um deus passeando na terra, semeava os milagres? A adunca face do fariseu escureceu enrugada ­ e a sua cólera retumbou como um tambor orgulhoso:

- Oh! Escravos pagãos! Oh! Blasfemos! Onde ouvistes que existissem profetas ou milagres fora de Jerusalém? Só Jeová tem força no seu Templo. De Galiléia, surdem os néscios e os impostores...

E como os servos recuavam ante o seu punho erguido, todo enrodilhado de dísticos sagrados - o furioso Doutor saltou da mula, e, com as pedras da estrada, apedrejou os servos de Obede, uivando: Raca! Raca! E todos os anátemas rituais. Os servos fugiram para Enganim. E grande foi a desconsolação de Obede, porque os seus gados morriam, as suas vinham secavam - e, todavia, radiantemente, como uma alvorada por detrás das serras, crescia, consoladora e cheia de promessas divinas, a fama de Jesus da Galiléia.

Por esse tempo, um centurião romano, Públio Séptimo, comandava o forte que domina o vale de Cesaréia, até à cidade e ao mar. Públio, homem áspero, veterano da campanha de Tibério, contra os partas, enriquecera durante e revolta de Samaria com presas e saques; possuía minas da Ática, e gozava, como favor supremo dos deuses, a amizade de Flaco, legado imperial da Síria. Mas uma dor ria sua prosperidade muito poderosa, como um verme rói um fruto muito suculento. Sua filha única, para ele mais amada que vida e bens, definhava com um mal sutil e lento, estranho mesmo ao saber dos esculápios e mágicos que ele mandara consultar a Sídon e a Tiro. Branca e triste como a lua num cemitério, sem um queixume, sorrindo palidamente a seu pai, definhava, sentada na alta esplanada do forte, sob um velário, alongando saudosamente os negros olhos tristes pelo azul do mar de Tiro, por onde ela navegara da Itália, numa opulenta galera. Ao seu lado, por vezes, um legionário, entre as ameias, apontava vagarosamente ao alto a flecha no céu rutilante. A filha de Séptimo seguia um momento a ave, torneando, até bater morta sobre as rochas: - depois, com um suspiro, mais triste e mais pálida, recomeçava a olhar para o mar.

Então, Séptimo, ouvindo contar, a mercadores de Corazim, deste Rabi admirável, tão potente sobre os Espíritos, que sarava os males tenebrosos da alma, destacou três decúrias de soldados para que o procurassem pela Galiléia, e por todas as cidades da Decápolis, até à costa, e até Áscalon. Os soldados enfiaram os escudos nos sacos de lona, espetaram nos elmos ramos de oliveira- e as suas sandálias ferradas apressadamente se afastaram, ressoando sobre as lajes de basalto da estrada romana, que desde Cesária até ao largo corta toda a tetrarquia de Herodes. As suas armas, de noite, brilhavam no topo das colinas, por entre a chama ondeante dos archotes erguidos.

De dia, invadiam os casais, rebuscavam a espessura dos pomares, esfuracavam com a ponta das lanças a palha das medas; e as mulheres, assustadas, para os amansar, logo acudiam com bolos de mel, figos novos, e malgas cheias de vinho, que eles bebiam de um trago, sentados à sombra dos sicômoros. Assim correram a Baixa Galiléia - e, do Rabi, só encontraram o sulco luminoso nos corações. Enfastiados com as inúmeras marchas, desconfiando que os judeus sonegassem o seu feiticeiro para que os romanos não aproveitassem do superior feitiço, derramavam com tumulto a sua cólera, através da piedosa terra submissa. À entrada das pontes detinham os peregrinos, gritando o nome do Rabi, rasgando os véus às virgens; e, à hora em que os cântaros se enchem nas cisternas, invadiam as ruas estreitas dos burgos, penetravam nas sinagogas, e batiam sacrilegamente, com os punhos das espadas nas Thebahs, os Santos Armários de cedro que continham os Livros Sagrados.

Nas cercanias de Hébron, arrastaram os Solitários pelas barbas para fora das grutas, para lhes arrancar o nome do deserto ou do palmar em que se ocultava o Rabi: - e dois mercadores fenícios, que vinham de Jopé com uma carga de malobatro, e a quem nunca chegara o nome de Jesus, pagaram por esse delito cem dracmas a cada decurião. Já a gente dos campos, mesmo os bravios pastores da Iduméia, que levam as reses brancas para o Templo, fugiam espavoridos para as serranias, apenas luziam, nalguma volta do caminho, as armas do bando violento. E da beira dos eirados, as velhas sacusiam como taleigos a ponta dos cabelos desgrenhados, e arrojavam sobre eles as Más Sortes, invocando a vingança de Elias.

Assim tumultuosamente erraram até Áscalon; não encontraram Jesus; e retrocederam ao longo da costa, enterrando as sandálias nas areias ardentes. Uma madrugada, perto de Cesaréia, marchando num vale, avistaram sobre um outeiro um verde-negro bosque de loureiros, onde alvejava, recolhidamente, o fino e claro pórtico de um templo. Um velho, de compridas barbas brancas, coroado de folhas de louro, vestido com uma túnica cor de açafrão, segurando uma curta lira de três cordas, esperava gravemente, sobre os degraus de mármore, a aparição do Sol. Debaixo, agitando um ramo de oliveira, os soldados bradaram pelo Sacerdote. Conhecia ele um novo Profeta que surgira na Galiléia, e tão destro em milagres que ressuscitava os mortos e mudava a água em vinho? Serenamente, alargando os braços, o sereno velho exclamou por sobre a rociada verdura do vale:

- Oh! Romanos, pois acreditais que em Galiléia ou Judéia apareçam profetas consumando milagres? Como pode um bárbaro alterar a Ordem instituída pro Zeus?... Mágicos e feiticeiros são vendilhões, que murmuram palavras ocas, para arrebatarem a espórtula dos simples... Sem a permissão dos imortais, nem um galho seco pode tombar da árvore, nem seca folha pode ser sacudida na árvore. Não há profetas, não há milagres... Só Apolo Délfico conhece o segredo das coisas!

Então, devagar, com a cabeça derrubada, como numa tarde de derrota, os soldados recolheram à fortaleza de Cesaréia. E grande foi o desespero de Séptimo, porque sua filha morria, sem um queixume, olhando o mar de Tiro - e todavia a fama de Jesus, curador dos lânguidos mares, crescia, sempre mais consoladora e fresca, como a aragem da tarde que sopra do Hermo, e, através dos hortos, reanima e levanta as açucenas pendidas.

Ora, entre Enganim e Cesaréia, num casebre desgarrado, sumido na prega de um cerro, vivia a esse tempo uma viúva, mais desgraçada mulher que todas as mulheres de Israel. O seu filhinho único, todo aleijado, passara do magro peito a que ela o criara para os farrapos da enxerga apodrecida., onde jazera, sete anos passados, mirrando e gemendo. Também a ela a doença a engenhara dentro dos trapos nunca mudados, mais escura e torcida que uma cepa arrancada. E, sobre ambos, espessamente a miséria cresceu como o bolor sobre os cacos perdidos num ermo. Até na lâmpada de barro vermelho, secara há muito o azeite. Dentro da arca pintada, não restava grão ou côdea. No estio, sem pasto, a cabra morrera. Depois, no quinteiro, secara a figueira. Tão longe do povoado, nunca esmola de pão ou mel entrava o portal. E só ervas apanhadas nas fendas das rochas, cozidas sem sal, nutriam aquelas criaturas de Deus na Terra Escolhida, onde até às aves maléficas sobrava o sustento!

Um dia, um mendigo entrou no casebre, repartiu do seu farnel com a mãe amargurada, e um momento sentado na pedra da lareira, coçando as feridas das pernas, contou dessa grande esperança dos tristes, esse Rabi que aparecera na Galiléia, e de um pão no mesmo cesto fazia sete, e amava todas as criancinhas, e enxugava todos os prantos, e prometia aos pobres um grande e luminoso Reino, de abundância maior que a corte de Salomão. A mulher escutava, com olhos famintos. E esse doce Rabi , esperança dos tristes, onde se encontrava? O mendigo suspirou. Ah! Esse doce Rabi, quantos o desejavam, que se desesperançavam! A sua fama andava por sobre toda a Judéia, como o Sol que até por qualquer velho muro se estende e se goza; mas para enxergar a claridade do seu rosto, só aqueles ditosos que o seu desejo escolhia. Obede, tão rico, mandara os seus servos por toda a Galiléia para que procurassem Jesus, o chamassem com promessas a Enganim: Séptimo, tão soberano, destacara os seus soldados até à costa do mar, para que buscassem Jesus, o conduzissem, por seu mando, a Cesaréia. Errando, esmolando por tantas estradas, ele topara os servos de Obede, depois os legionários de Séptimo. E todos voltavam, como derrotados, com as sandálias rotas, sem ter descoberto em que mata ou cidade, em que toca ou palácio, se escondia Jesus.

A tarde caía. O mendigo apanhou o seu bordão, desceu pelo duro trilho, entre a urze e a rocha. A mãe retomou o seu canto, mas vergada, mais abandonada. E, então, o filhinho, num murmúrio mais débil que o roçar de uma asa, pediu a mãe que lhe trouxesse esse Rabi, que amava as criancinhas ainda as mais pobres, sarava os males ainda mais antigos. A mãe apertou a cabeça esguedelhada:

- Oh, filho! E como queres que eu te deixe, e me aos caminhos, à procura do Rabi da Galiléia? Obede é rico e tem servos, e debalde buscaram Jesus, por areias e colinas, desde Corazim até ao país de Moabe. Séptimo é forte, e tem soldados, e debalde correram por Jesus, desde o Hébron até ao mar! Como queres que te deixe? Jesus anda por muito longe e a nossa dor mora conosco, dentro destas paredes, e dentro delas nos prende. E mesmo que o encontrasse, como convenceria eu o Rabi tão desejado, por quem ricos e fortes suspiram, a que descesse através das cidades até este ermo, para sarar um entrevadinho tão pobre, sobre enxerga tão rota?

A criança, com duas longas lágrimas na face magrinha, murmurou:

- Oh! Mãe! Jesus ama todos os pequeninos. E eu ainda tão pequeno, e com um mal tão pesado, e que tanto queria sarar!

E a mãe, em soluços:

- Oh! Meu filho, como posso te deixar? Longas são as estradas da Galiléia, e curta a piedade dos homens. Tão rota, tão trôpega, tão triste, até os cães me ladrariam da porta dos casais. Ninguém atenderia o meu recado, e me apontaria a morada do doce Rabi. Oh! Filho! Talvez, Jesus morresse... Nem mesmo os ricos e os fortes o encontram. O céu o trouxe, o céu o levou. E com ele para sempre morreu a esperança dos tristes.

Dentre os negros trapos, erguendo as pobres mãozinhas que tremiam, a criança murmurou:

- Mãe, eu queria ver Jesus...

E logo, abrindo devagar a porta e sorrindo, Jesus disse à criança:

- Aqui estou...

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